Há cerca de 20 anos atrás o mundo dos automóveis de alto desempenho sofreu uma revolução com o lançamento do McLaren F1. Construído com as últimas tecnologias aplicadas em carros de competição, como monocoque em fibra de carbono, aerodinâmica ativa (na forma de dois ventiladores para sucção de ar na parte inferior do carro ao estilo Chaparral e um freio aerodinâmico, que trabalha de maneira similar aos flaps das asas dos aviões durante as aterrissagens). Mas mais que as tecnologias, o design totalmente funcional e atemporal, a vitória nas 24 Horas de Le Mans vencendo puros-sangues de corrida e o recorde de velocidade para carros de produção em série que durou até 2005 fizeram com que o F1 se tornasse um mito. Esses fatos definiram um novo patamar, algo acima daquilo conhecido como um supercarro: acredito eu (e essa é uma definição pessoal minha) que foi nesse momento que surgiram os hipercarros, modelos cujo refinamento tecnológico, desempenho e exclusividade estão acima dos grandes esportivos como Porsche 911 e Dodge Viper. Depois dele, diversos modelos surgiram que podem ser enquadrados nesse critério: Bugatti Veyron, Ferrari Enzo, Pagani Huayra, a lista pode ser estendida para dezenas de nomes, os quais, cada um a seu modo, tornaram-se ícones. Para os próximos anos, uma nova leva de hipercarros está sendo preparada, cada um buscando se destacar a sua maneira, com mais potência bruta, quebrando de novos limites de desempenho, aplicando novas tecnologias e desafiando o limite daquilo que era tomado como possível.
Parte 1: Koenigsegg Regera
Para começar essa série, o modelo escolhido é o Koenigsegg Regera. Desde o início dos anos 2000 a montadora sueca vêm brindando o mundo com modelos que podem ser melhor descritos como carros de corrida para as ruas. Extremamente potentes e leves, o foco dos Koenigsegg é desde o primeiro CC ter os carros mais rápidos, seja em velocidade ou em uma pista de corridas. Isso tudo foi mudado com o mais recente lançamento escandinavo: o Regera (palavra sueca que significa reinar), que busca aliar o desempenho que já é marca registrada da montadora a uma condução mais refinada.
No exterior a primeira coisa que chama a atenção são os faróis de LED que foram colocados numa disposição que a Koenigsegg chama de Constellation DRL (Daytime Running Lights, ou luzes de uso diurno). Nesse conceito os LEDs foram distribuídos ao longo dos faróis de forma a mimetizar o efeito das constelações no céu em uma noite escura.
Comparado ao Agera, com quem compartilha parte do monocoque, o Regera possui um novo sub-chassi traseiro, mais flexível e apoiado sobre montantes ativos, que permite uma melhor filtração das vibrações do conjunto powertrain em condições normais, mas assumindo um comportamento mais rígido quando existe uma maior solicitação do conjunto. Na aerodinâmica conta com flaps dianteiros ativos, além de uma asa traseira ativa com suportes estilo swan neck. Se o Koenigsegg One:1 foi o primeiro carro a contar com esse tipo de solução, o Regera levou a tecnologia um passo a frente, ao adicionar a habilidade de retrair totalmente a asa traseira para reduzir o coeficiente de arrasto aerodinâmico. Além disso conta com sistema de suspensão ativa hidráulica, com controles ativos de altura e amortecimento na dianteira e traseira. Tudo isso é suficiente para gerar 450 kg de downforce a uma velocidade de 250 km/h.
O sistema hidráulico, por sinal, é um dos mais avançados já vistos em um automóvel de rua, e permitiu que os amortecedores a gás normalmente utilizados (similares aos encontrados nos porta-malas da maioria dos carros comuns) fossem substituídos por outros hidráulicos. Como todos nós sabemos, um dos objetivos de quem possui um carro desse tipo é chamar a atenção, e a Koenigsegg soube capitalizar nesse ponto, pois transformou o Regera no primeiro carro totalmente robotizado, onde todos os mecanismos de abertura da carroceria podem ser acionados a distância através do controle ou de um smartphone, o que torna o modelo um verdadeiro Transformer da vida real, fazendo com que mesmo estaticamente ver esse mecanismo em ação seja um show a parte.
Como em todos os outros modelos da marca, conta com o que é chamado Dihedral Syncro Helix Doors, as famosas portas diedrais que se tornaram uma das marcas registradas da Koenigsegg. Esse mecanismo, apesar do nome complexo, tem funcionamento relativamente simples, como pode ser visto no gif acima. Consiste, basicamente, em dois braços fixados na carroceria que possuem duas engrenagens cônicas montadas de forma fixa, enquanto a porta é presa em uma outra engrenagem cônica que cujo o único grau de liberdade é a rotação, de forma que, de acordo com que a porta é aberta, um movimento de rotação é criado na porta, como pode ser visto no gif a baixo:
No interior também houve uma revolução: diferente de outros modelos da marca, cujo interior espartano lembra o de carros de corrida, o Regera conta com um isolamento acústico mais cuidado, além de assuntos ajustáveis em oito direções, sistema multimídia Apple CarPlay com tela de 9”, sensores de estacionamento dianteiros e traseiros, além de um sistema de som revisado.
A alma da fera – 1500 hp sem marchas
Mas o grande destaque de um carro como esses não está nem na aerodinâmica nem nas características visuais chamativas. O grande chamariz está no seu sistema de powertrain, que não pode ser chamado de nada menos do que revolucionário. Nesse caso, a alma do carro continua sendo o motor a combustão, uma unidade 5.0 V8 bi-turbo, com duplo comando no cabeçote e cárter seco, similar aquela dos modelos Agera e One:1. Para o Regera, contudo, foi adotado um sistema híbrido (que alia motores elétricos ao motor convencional), de forma que não foi necessário ser tão agressivo com o motor a gasolina para atingir uma elevada potência (a potência declarada pela Koenigsegg para o motor a combustão do Regera é de 820 kW, ou 1114 cv, bem abaixo dos 1360 cv do One:1) e os turbos puderam ser substituídos por outros de menor inércia, melhorando a dirigibilidade e torque em baixas rotações.
Crítico de longa data dos automóveis híbridos, Christian von Koenigsegg sempre teve uma forte opinião de que esses sistemas geralmente apresentam compromissos, seja em peso, custo, complexidade, aproveitamento do espaço ou eficiência. Para o novo carro, foi criada uma solução inovadora, desenvolvida pelo time de engenharia avançada da empresa: o Koenigsegg Direct Drive (KDD), elimina totalmente o uso de uma transmissão no sentido convencional (seja ela manual, automática, automatizada, CVT…). Nesse sistema, a transmissão foi eliminada e o motor ligado diretamente ao diferencial traseiro através de um acoplamento viscoso. Alguns já devem estar se perguntando, o que é esse tal acoplamento viscoso, e como ele funciona? De maneira simples, um acomplamento viscoso é um dispositivo que alia uma bomba e uma turbina hidráulica em uma mesma carcaça. O motor fica ligado ao lado da bomba, e a medida que as rotações sobem, o óleo é bombeado através da turbina, forçando o movimento no eixo de saída. Na prática, o que se sente com esse tipo de mecanismo é o mesmo que acionar uma embreagem de maneira suave, com uma transferência gradativa de potência do motor para o eixo de saída. No vídeo abaixo, da empresa alemã Voith, é possível ver mais detalhadamente o princípio de funcionamento desse sistema:
https://www.youtube.com/watch?v=i-2LjlDZU10&nohtml5=False
Além disso, três motores elétricos de fluxo axial YASA foram adicionados para fornecer força suplementar ao motor convencional. Na traseira, dois motores elétricos de 180kW (cerca de 245 cv) estão ligados em paralelo aos semi-eixos, um em cada roda, tracionando diretamente e permitindo, entre outras coisas, a adoção de torque vectoring, que basicamente é, dosar o torque fornecido a cada uma das rodas de forma a melhorar o comportamento em curvas e corrigir eventuais erros do condutor. Exemplificando: numa curva a direita, o sistema forneceria mais força a roda externa, de forma a gerar uma força que empurraria o veículo para dentro da curva, aumentando a velocidade de contorno.
O outro motor elétrico, de 160 kW (cerca de 217 cv) fica posicionado junto ao virabrequim, num solução similar aos sistemas BSG quanto ao modo de trabalho, fazendo função de motor de partida, gerador elétrico e ajudando a girar o motor de combustão, fornecendo torque até que a rotação suba e os turbos “encham”, melhorando a resposta do motor. Com essa construção, foi possível eliminar a transmissão convencional pois, até 50 km/h os motores elétricos das rodas traseiras ficam responsáveis por mover o carro, e nesse ponto o acoplamento viscoso trabalha como uma embreagem, dosando a potência transferida pelo motor até que uma transição completa seja realizada. Nessa fase inicial, onde falta força ao motor de combustão, o motor elétrico central entra em funcionamento para ajudar no fornecimento de força, permitindo que as rotações subam mais rapidamente e os turbos entre na sua faixa ótima de funcionamento.
Justamente por essa construção inovadora a Koenigsegg afirma que o carro é apenas 88kg mais pesado do que se fosse equipado com uma transmissão de dupla embreagem e sem a presença do sistema híbrido de propulsão. Mais que isso a montadora sueca afirma que o modelo possui a maior densidade de energia armazenada em relação a qualquer concorrente do mercado (leia-se aqui a santíssima trindade dos hipercarros: McLaren P1, LaFerrari e Porsche 918), como pode ser visto na tabela abaixo:
McLaren P1* |
Ferrari LaFerrari* |
Porsche 918* |
Koenigsegg Regera* |
|
Potência combinada |
903 hp |
950 hp |
875 |
1500 hp |
Peso (kg) |
1450 |
1345 |
1634 |
1628 |
Capacidade da bateria (kWh) |
4,7 |
2,3 |
6,8 |
9,27 |
Carga/peso (Wh/kg) |
3,24 |
1,71 |
4,16 |
5,69 |
*Dados divulgados pelos fabricantes.
Os dados de desempenho também estão num nível acima, chegando aos 100 km/h em 2,7 segundos. Até aí são números que carros mais “normais” como o Nissan GT-R também alcançam, mas a partir daí é que o desempenho do Regera começa a se destacar: os 300 km/h são atingidos em 12 segundos e os 400 em 20 segundos, até a máxima de 410 km/h! Se como velocidade máxima o número não chega a surpreender num mundo de Bugatti Veyron e Hennessey Venom, a aceleração está em um patamar completamente sem precendentes para carros de rua. Mostrado inicialmente no Salão de Genebra de 2015, o Regera voltou para a edição de 2016 do salão, dessa vez de forma definitiva para os 80 felizardos (e ricos) que irão poder adquirir um pela bagatela de cerca de US$ 1,9 milhão.
Fontes:
The Regera – a new Era. Disponível em: http://koenigsegg.com/regera/. Acessado em: 26/02/2016.
Imagens:
[1]: Divulgação. Disponível em: http://koenigsegg.com/regera/. Acessado em: 26/02/2016.