Na parte 1 dessa série (se você ainda não viu, leia aqui), falamos sobre um motor cuja grande revolução está na aplicação de plásticos de engenharia para a fabricação de boa parte das peças. Hoje falaremos de um motor que é mais tradicional quanto aos materiais, mas que utiliza um ciclo termodinâmico totalmente diferente daquilo que estamos acostumados.
Parte 2: X-Mini
A base para a criação dos motores X-Mini surgiu com a criação de um novo ciclo termodinâmico pelos Drs. Nikolay Shkolnik e Alexander Shkolnik em 2003. Esse ciclo, chamado HEHC (High Efficiency Hybrid Cycle, ou em tradução livre Ciclo Híbrido de Alta Eficiência), consiste em uma combinação de características dos ciclos Otto, Diesel e Atkinson.
No gráfico acima podemos ver o ciclo termodinâmico HEHC ao lado dos ciclos Otto e Diesel, e esse gráfico irá nos ajudar a entender porque o motor X-Mini é mais eficiente. Para interpretar isso, é importante saber que o trabalho de um gás durante uma transformação pode ser definido como a diferença entre o produto da sua pressão pelo volume ao longo da transformação. Simplificando, a área do gráfico sob a curva da expansão (3H a 4A) representa a quantidade de trabalho disponível pela queima do combustível, enquanto a área sob a curva do compressão (1 a 2D,H) representa o trabalho gasto para comprimir o fluido de trabalho até a queima do combustível. No vídeo abaixo veremos o ciclo HEHC, e depois uma explicação sobre o que está acontecendo em cada fase:
Compressão (1 – 2D,H): Na primeira etapa o motor comporta-se como qualquer outro, comprimindo o ar admitido. Duas variações são possíveis para o ciclo, uma com taxa de compressão mais elevada para possibilitar a ignição por compressão (CI-HEHC), e outra com taxa de compressão mais baixa para ignição por centelha (SI-HEHC).
Combustão (2D,H – 3H): pelas características construtivas do motor a combustão ocorre praticamente a volume constante (ver vídeo em 1:18), o que aumenta a eficiência. Isso ocorre porque praticamente todo o calor fornecido pela queima do combustível cria um aumento de pressão do fluido de trabalho, aumentado a taxa de expansão real e a quantidade de trabalho utilizável que pode ser aproveitado. Sem dados concretos sobre o motor é difícil afirmar com certeza, porém de forma superficial é possível supor que esse tipo de construção do motor apresenta vantagens nesse quesito em relação aos motores de pistão convencionais. Observando pelo gráfico, quanto mais vertical for a reta 2D,H – 3H, ou seja, quanto mais próximo o processo for de uma combustão a volume constante, maior será a energia disponível.
Expansão (3H – 4A): Outro ponto curioso do motor X-Mini, a expansão se dá em um volume maior que o da compressão, uma característica adotada do Ciclo Atkinson, que hoje é induzida em motores de pistão principalmente em veículos híbridos, através da utilização de estratégias de comando de válvulas variável. Essa característica trás a vantagem de permitir que se retire mais trabalho do gás de combustão, pois o máximo trabalho realizável por um fluido é atingido quando sua pressão se torna o mais próxima daquela para onde o fluido será descarregado. Graficamente, quanto menor a pressão e o volume nos quais o fluido de trabalho for descarregado para o ambiente, maior será a área sob a curva, e consequentemente mais energia poderá ser aproveitada.
Resfriamento a volume constante (4A – 4B): nesta etapa o ciclo HEHC se comporta como o ciclo Otto, rejeitando calor para o ambiente.
Exaustão e admissão (4B – 1): Aqui também o motor X-Mini se comporta como qualquer motor de combustão interna.
A construção do motor
A LiquidPiston também inovou na forma construtiva do motor. Os motores X são motores rotativos como os famosos Wankel, porém sua construção é bem diferente. Conhecendo o calcanhar de Aquiles dos motores Wankel que se encontra na vedação entre as câmaras de combustão (os selos aplicados às bordas do rotor se desgastam com facilidade, reduzindo a pressão efetiva na câmara e aumentando o consumo de combustível, além de necessitar a adição de grandes quantidades de lubrificante a mistura ar-combustível, aumentando os índices de poluição). Nos motores X, contudo, os selos foram movidos para a carcaça do motor (ver item 2 da imagem acima), onde podem ser lubrificados com mais facilidade, o que pode resolver o problema do desgaste excessivo dos motores rotativos.
Os criadores alegam ainda que essa construção de motor apresenta baixos níveis de vibração, ruído e uma redução de massa da ordem de 30% comparados a motores a pistão convencionais de capacidade semelhante. As principais aplicações previstas são equipamentos portáteis como moto-serras e cortadores de grama, geradores portáteis e unidades de potência auxiliares. No vídeo abaixo podemos ver uma apresentação dos principais componentes e funcionamento físico do motor:
Vejo alguns desafios a serem compreendidos e enfrentados durante o desenvolvimento do motor: um deles está em seu sistema de admissão, pois a mesma se dá por um canal interno ao virabrequim. Isso com certeza irá gerar uma interação aerodinâmica curiosa entre o ar admitido e o eixo rotante. Outra dificuldade será garantir uma boa vedação entre a saída do eixo e o canal que percorre o rotor, o que provavelmente irá necessitar selos especiais e controles de montagem rigorosos para manter um bom alinhamento entre os canais, com o risco de prejudicar o rendimento do motor por perdas na admissão.
X-Mini a gasolina
O primeiro protótipo do motor movido a gasolina é bem pequeno, com cilindrada de apenas 70 cm³, mas potência de cerca de 3,5 HP a 10.000 rpm. Para analisar o comportamento da frente de chama durante a combustão nesse motor, o pessoal da LiquidPiston substituiu a tampa traseira do motor por uma especial feita em quartzo e filmou a com uma câmera especial capaz de registrar 20.000 frames por segundo, gerando o vídeo abaixo:
Além disso, eles também disponibilizaram o vídeo de um teste em dinamômetro de bancada, e recentemente o motor foi montado em um kart, a primeira vez que o X-Mini foi testado fora do ambiente de laboratório.
X-Mini a diesel
Além do motor a gasolina, também está sendo desenvolvida uma versão a movia a diesel do motor X-Mini. Os protótipos atuais fora criados apenas como prova de conceito, e são capazes de rodar por curtos períodos com baixa carga, atingindo eficiência de 33% nesse regime, que é comparável ao rendimento entre 30 e 40% que é atingido por motores Diesel convencionais em carga parcial. A grande vantagem, como pode ser visto abaixo é a construção compacta do motor X-Mini em relação a um motor Diesel normal.
Fontes:
How It Works. Disponível em: http://liquidpiston.com/technology/how-it-works/. Data de acesso: 08/12/2014.
HEHC Cycle. Disponível em: http://liquidpiston.com/technology/hehc-cycle/. Data de acesso: 08/12/2014.
X Mini Gasoline 70cc Engine Prototype: Disponível em: http://liquidpiston.com/technology/x-mini-gasoline/. Data de acesso: 08/12/2014.
X Diesel Engines. Disponível em: http://liquidpiston.com/technology/x-engines-diesel/. Data de acesso: 08/12/2014.
SAE Internal Combustion Engines Handbook: Chapter 5: Thermodynamic Fundamentals.
Moran, Michael J.; Shapiro, Howard N.: Princípios de Termodinâmica para a Engenharia; Capítulo 9: Sistemas de Potência a Gás – Motores de Combustão Interna, pg 378 a 388.
Imagens:
[1]: Retirado de: X Mini Gasoline 70cc Engine Prototype: Disponível em: http://liquidpiston.com/technology/x-mini-gasoline/. Data de acesso: 08/12/2014.
[2]: Retirado de: HEHC Cycle. Disponível em: http://liquidpiston.com/technology/hehc-cycle/. Data de acesso: 08/12/2014.
[3]: Retirado de: Nice, Karim; How Rotary Engines Works. Disponível: http://auto.howstuffworks.com/rotary-engine2.htm. Data de acesso: 28/07/2016.
[4]: Retirado de: X Diesel Engines. Disponível em: http://liquidpiston.com/technology/x-engines-diesel/. Data de acesso: 08/12/2014.
O motor à combustão interna ideal é aquele que comprime por pistão e expande por sistema rotativo. Vide https://patentscope.wipo.int/search/en/WO2014036626