O misterioso caso do Emme Lotus

A história da indústria automobilística brasileira é cerca de fatos curiosos e inesperados, sendo tão rica e diversa quanto nosso próprio país. Mesmo assim, um modelo se destaca pela sua história polêmica e misteriosa. O Megastar Emme, mais conhecido como Emme Lotus foi o fruto de um investimento alegado de US$ 162 milhões de um grupo chamado New Concept Aktiengesellshaft, com sede no paraíso fiscal de Liechtenstein.

A esquerda uma vista da fábrica com alguns carros e diversas scooter Mirage. A direita a linha de montagem do Emme Lotus. Fonte: Divulgação [1].

Com esse dinheiro, a Megastar Veículos, braço brasileiro da companhia sediado em Pindamonhangaba deveria produzir dois modelos: a scooter Mirage com motor de 50cc e um sedã de luxo esportivo que seguisse a filosofia de baixo peso da Lotus, capaz de competir contra BMW M5 e Mercedes-Benz E 55 AMG, para ser vendido tanto no mercado interno quanto exportado (um modelo chegou a ser levado para a Europa e fez o trajeto Milão-Monte Carlo-Milão, e vídeo de baixa qualidade gravado, provavelmente para divulgação).

Segundo a Megastar o índice de nacionalização do carro era de respeitáveis 87%, sendo apenas motor da versão 422T e a transmissão importados, enquanto a carroceria  (feita através de injeção de um polímero chamado VeXtrim, que segundo informações era resistente o suficiente para resistir a disparos de revólver calibre 38) montada sobre um chassi de aço zincado e os outros componentes mecânicos eram nacionais. O carro possuía um nível de refino bem superior ao de qualquer modelo nacional, com suspensão independente nas quatro rodas com amortecedores reguláveis e barra estabilizadora na frente e atrás, diferencial auto-blocante PowerLock e chegando até mesmo a ter eixo traseiro auto-direcionável (como o Nissan Skyline GT-R), porém era clara a presença de peças de outros automóveis, como nos carros fora-de-série da década de 80. Aliás, uma das maiores controvérsias sobre o carro é seu design, de linhas gerais muito semelhantes aos do Volvo S60, lançado em 1998, mas baseado no conceito Volvo ECC de 1992.

Apesar da afirmação de que era um projeto que vinha sendo desenvolvido a dez anos na Suíça, é muito curiosa a semelhança do Emme Lotus com o conceito Volvo ECC, que deu origem ao Volvo S80 também em 1998. Fonte: Divulgação [1].

Apesar de ter sido visto rodando como protótipo desde 1996, a apresentação oficial ocorreu apenas em outubro de 1997, durante o Brasil Motor Show. O material de divulgação então distribuído citava três versões, diferenciadas pela motorização: a 420 (2.0 16V de 145 bhp), a 420T (2.0 16V turboalimentado de 183 bhp) e 422T (2.2 16V turboalimentado de 264 bhp).

Emme 420T, equipado com motor 2.0 turbo fabricado pela própria Emme. Fonte: Divulgação [1].

Os motores de 2 litros eram supostamente de projeto próprio e seriam fabricados no Brasil, embora suas especificações lembrassem muito as dos motores VW AP 2000, como por exemplo o diâmetro e curso (respectivamente 82,5mm e 92,8mm), o que trouxe ainda mais mistério e dúvidas sobre a idoneidade do projeto.

Motor 2.0 turbo do Emme, que carregava diversas semelhanças com os motores AP 2.0. Fonte: Divulgação [1].

Já o motor 2.2 era uma unidade Lotus como a que fora empregada no Esprit. A este motor era acoplada uma transissão BorgWarner igual à do Ford Mustang V8, que tinha relações muito longas, inadequadas para um motor de torque em altas rotações montado em um carro de 1600 kg, de forma que o modelo 2.0 turbo tinha melhor aceleração que o 2.2, por ter maior disponibilidade de torque em baixas rotações. Não fossem suficientes esses problemas, outro fator que gerava desconfiança era a inexistência de ABS e air-bags, que a esta altura já eram equipamentos padrão para carros dessa classe, o que de certa forma tornaria inviável sua venda no continente europeu.

Apresentação do Emme Lotus no Salão do Automóvel de 1998. Fonte: Divulgação [1].

Em 1998 o carro foi mostrado no Salão do Automóvel, quando começaram a ser aceitas as primeiras encomendas. Na época do lançamento o carro era vendido ao preço de R$ 54.450, superior ao que era cobrado pelo Omega CD 4.1 (R$ 47.000), mas bem abaixo dos R$ 221.400 cobrados pelo Mercedes E55 AMG. A mídia da época demonstrava grande empolgação com o novo carro brasileiro que seria capaz de competir diretamente com os melhores sedans alemães, e mesmo com a política obscura da empresa de não divulgar muitas informações o modelo ganhou notoriedade nas publicações especializadas da época, como pode ser visto nas reportagens abaixo:

Reportagem da revista Autoesporte sobre o Emme Lotus. Fonte: Divulgação [1].
Reportagem da revista Quatro Rodas sobre o Emme Lotus. Fonte: Divulgação [1].

A produção durou até 1999, quando a falência da Megastar foi decretada, tendo sido produzidas entre 12 e 15 unidades, das quais 5 seriam do modelo 420T e as restantes do 422T. Novamente, esse fato apenas aumenta as suspeitas sobre a idoneidade da empresa, pois não faria sentido um investimento deste porte para uma produção tão reduzida. Vale lembrar que a crise da desvalorização do real em 1999 onde a cotação do real frente ao dólar subiu de cerca de R$ 1,20 para próximo a R$ 2,00, junto a um aumento considerável da taxa de juros. Essa mudança nas regras do jogo prejudicou diversas montadoras, que haviam baseado sua política de preços e de nacionalização na taxa cambial fixa. Pouco depois a fabricação de diversos modelos foi cessada, como a picape Dodge Dakota e o Mercedes Classe A, justamente pelo efeito que o preço dos modelos sofreu com a crise.

Detalhe do compartimento do motor do Emme Lotus 422T.
O interior apresenta um design interessante e nível superior ao de modelos nacionais da época, porém ainda inferior em qualidade ao daqueles que seriam seus concorrentes.

Um dos compradores do Emme Lotus, o engenheiro Ronaldo Franchini de Belo Horizonte, decidiu investigar o que ocorria na empresa e pelas informações que obteve junto a um dos ex-técnicos, os motores eram praticamente sucata para a Lotus, que já equipava o Esprit com o novo motor V8 3,5 litros biturbo. Segundo ele, de cada 10 motores que chegavam ao Brasil, apenas 2 podiam ser aproveitados, e alguns carros foram montados com motores defeituosos. A única participação da Lotus no projeto, teria sido enviar suporte técnico para a regulagem dos motores para atender os limites de emissões vigentes rodando com a gasolina brasileira. A fábrica, segundo apurado por Franchini, realmente possuía os equipamentos de moldagem e injeção (capazes de produzir um veículo a cada 12 minutos com apenas dois funcionários) e setor de pintura, mas as peças plásticas não tinham especificações de tolerância, de forma que não havia garantia que uma peça defeituosa ou quebrada pudesse ser substituída por outra equivalente sem a necessidade de ajustes. Além disso, Franchini afirmava que os equipamentos presentes na fábrica teriam valor equivalente a no máximo US$ 15 milhões. o que em parte pode ser explicado pelos gastos em desenvolvimento e em ferramentais e equipamentos para fornecedores, porém ainda assim as contas provavelmente não fechariam.

Na traseira fica ainda mais clara a “inspiração” do Emme Lotus. Fonte: Divulgação [1].

Uma nova luz?  

Com uma história cercada de mistérios como essa, a busca de informações novas não é tarefa fácil, contudo após pesquisas exaustivas pude encontrar novas informações que podem jogar alguma luz sobre esse caso. Em processo trabalhista do ano de 2000 contra a empresa mineira Gran Scooter Distribuidora e Comércio  Ltda. (leia a íntegra aqui), a empresa é acionada para recebimento de direitos trabalhistas. Nos autos deste processo o reclamante cita que essa empresa teria relação de solidariedade e/ou subsidiariedade para com a empresa Sered Minas Industrial Ltda.  (fornecedora de peças automotivas). Nos autos ainda é implicada que exista relação entre as empresas Gran Scooter, Sered e a Megastar Veículos Ltda. É citado ainda que as empresas Megastar e Gran Scooter possuíam sedes vizinhas, na cidade de São Paulo, bairro Itaim Bibi, rua Bandeira Paulista, número 727, 4º andar, a Megastar sediada no conjunto 43 e a Gran Scooter no conjunto 41. Também é citado nos autos do processo que a proprietária da empresa Gran Scooter seria a sra. Emília Ratti Morello, e que a empresa teria oferecido veículos Emme Lotus como pagamento das dívidas trabalhistas aos trabalhadores, sendo citado também o filho dela, Sérgio Maria Ratti. Eis que o mesmo Sérgio Ratti surge como diretor técnico da Megastar em reportagem da Folha de São Paulo de 1998 (leia aqui). Mais do que isso, nos autos consta depoimento de testemunha (Ramon Almeida, que seria o responsável pela contabilidade das três empresas), onde o mesmo cita que a origem do nome EMME seria uma abreviatura do nome Emília Morello, a mesma que era sócia da empresa Gran Scooter. Outro fato curioso citado, é que a sócia majoritária da Megastar Veículos Ltda. seria a Megastar S/A, uma offshore sediada no Panamá, o que difere das informações divulgadas a época, com registros de transferências de dinheiro entre as companhias somando ao menos 15 milhões de dólares registrados no Diário Oficial da União no ano de 1998. Restam ainda muitas dúvidas sobre a companhia e quais foram seus reais objetivos, porém a cada nova informação que surge se torna mais plausível acreditar que será possível chegar a uma conclusão para esse mistério.

Ficha técnica:

Modelo

Emme Lotus 422T

Fabricante

Megastar Veículos Ltda.

MOTOR

Localização

Dianteira, longitudinal

Tipo

Lotus 910S, a gasolina, 4 em linha, 4 válvulas por cilindro, turboalimentado, com bloco em alumínio e camisas revestidas em Nikasil

Cilindrada

2174 cm3

Diâmetro x Curso

95,3 mm x 76,2 mm

Taxa de compressão

8,0:1

Alimentação

Injeção eletrônica de combustível

Potência

264 bhp a 6500 rpm (DIN)

Torque

354 N.m a 3900 rpm (DIN)

TRANSMISSÃO

Manual, tração traseira, cinco marchas

SUSPENSÃO

Dianteira: Independente com braços triangulares duplos, barra estabilizadora, molas helicoidais e amortecedores telescópicos ajustáveis.

Traseira: Independente com braços triangulares duplos, braço de controle auto-direcional, barra estabilizadora, molas helicoidais e amortecedores telescópicos ajustáveis.

DIREÇÃO

Mecânica, de setor e sem-fim.

FREIOS

Disco ventilado nas rodas dianteiras e disco sólido nas traseiras.

RODAS E PNEUS

Rodas Emme de liga 15″x7J, com pneus Toyo Proxes U1 225/50 ZR15

CARROCERIA E CHASSI

Estrutura em aço galvanizado com carroceria sedan de VeXtrim, quatro portas, cinco lugares.

DIMENSÕES E PESO

Comprimento

4620 mm

Largura

1760 mm

Distância entre-eixos

Não disponível.

Peso

1600 kg

Porta-malas

Não disponível.

DESEMPENHO

Velocidade máxima

273 km/h

Aceleração de 0 a 100 km/h

5,0 segundos

Consumo de combustível

Não disponível.

Preço

R$ 54.450 (em 11/1998)

Fontes:

Mendonça, Henrique Samahá, Fabrício. Emme: desvendando o mistério, disponível em: http://bestcars.uol.com.br/artigos/emme-1.htm. Acessado em: 20/06/2016.

Pereira Filho, Arthur. Pindamonhangaba produz o carro mais caro do país, disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/dinheiro/fi02119811.htm. Acessado em 21/06/2016.

Brasil. 3ª Vara do Trabalho de Betim. Acórdão do Recurso Ordinário Trabalhista RO 12280/00. Relator: Sena, Adriana G. de. Disponível em: http://trt-3.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/129120724/recurso-ordinario-trabalhista-ro-1228000-12280-00/inteiro-teor-129120734. Acessado em 21/06/2016.

Imagens:

[1] Fonte: Divulgação. Disponível em http://web.archive.org/web/19980702061524/http://www.emme.com.br/. Data de acesso: 21/06/2016.

Informações adicionais:

Para aqueles que quiserem ver algo a mais sobre o Emme Lotus, recomendo a reportagem feita pelo Flávio Gomes para o programa Limite da ESPN:

 

 

 

2 thoughts on “O misterioso caso do Emme Lotus

  1. Por isso vi um anuncio no webmotors uma vez e nao entendi nada..era um cara vendendo um LOTUS e eu achei que era algum veiculo “perdido” no Brasil depois de importado na decada de 90….o unico LOTUS que eu lembrava era aquele do James Bond que virava submarino no “espião que me amava” e a equipe de Formula 1…rsrs….e lembro que o carro estava sendo vendido por uns 30 mil e poucos reais….

    1. Esses carros hoje são raridades, ainda que não tenham tanto valor de mercado são uma parte bem curiosa da nossa história automotiva.

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