No início dos anos 1990, enquanto o automobilismo nacional vivia um momento de reinvenção, surgiu em São Paulo um projeto que tinha tudo para mudar o jogo. A CLR — Chico Lameirão Racing — foi fundada oficialmente em 1994 por dois nomes de peso: o engenheiro Lauro Carneiro Neto e o lendário piloto Francisco “Chico” Lameirão, campeão brasileiro de Fórmula Ford (1971) e Super Vê (1975). Mas a história começa antes, quando o sonho de construir um Fórmula 3 brasileiro ganhava forma com o apoio da Embraer e o conhecimento de uma equipe multidisciplinar de especialistas.
Na primeira metade da década de 1990, o Brasil vivia um momento de transição industrial e econômica. Foi nesse contexto que surgiu o CLR F3, um projeto ousado de construção de um chassi de Fórmula 3 100% brasileiro, com aplicação direta de tecnologias aeronáuticas — fruto de uma colaboração inédita entre engenheiros do automobilismo e a Embraer.
Mais do que um carro, o CLR F3 representava uma tentativa séria de criar um produto competitivo no mercado internacional, incorporando inovação conceitual e excelência técnica. Sua proposta era disruptiva: posicionamento do motor na dianteira, estrutura em materiais compostos, e uma arquitetura aerodinâmica que se acreditava ser superior ao padrão dominante na categoria à época.
1. Concepção e Filosofia do Projeto
O projeto nasceu da colaboração entre o engenheiro Lauro Carneiro Neto e o piloto e construtor Francisco “Chico” Lameirão, campeão brasileiro de Fórmula Ford (1971) e Fórmula Super Vê (1975). Juntos, fundaram oficialmente a CLR – Chico Lameirão Racing Desenvolvimento Tecnológico em 1994.
A proposta era clara: construir um chassi de Fórmula 3 segundo os regulamentos da FIA, utilizando materiais e processos de alta tecnologia disponíveis no setor aeronáutico brasileiro. Para isso, firmaram uma parceria com a Embraer, que na época ainda era uma empresa estatal.
O conceito técnico do CLR F3 baseava-se em um motor dianteiro-central, posicionado à frente do cockpit, mas recuado em relação ao eixo dianteiro, com transmissão indo ao eixo traseiro através de um eixo cardã. Essa arquitetura rompia com a tradição dos F3 de motor traseiro, buscando melhor distribuição de peso (50/50) e liberando espaço para o fluxo aerodinâmico na seção traseira do carro – uma filosofia que décadas depois seria aplicada de forma mais extrema ao Nissan GT-R LM Nismo.
Com esse layout, a aerodinâmica foi desenvolvida com apoio técnico do CTA (Centro Técnico Aeroespacial), visando reduzir o arrasto, aumentar a eficiência dos difusores e explorar carenagens otimizadas.
Além disso, o projeto previa um entre-eixos curto e geometria de suspensão otimizada para pistas lentas e técnicas, tendência que crescia no automobilismo dos anos 1990.
O time técnico que conduziu o desenvolvimento era composto por:
- Francisco “Chico” Lameirão – idealizador e responsável pelo conceito, design da carroceria e validação técnica em pista. Sua experiência prática em carros como o Polar Super Vê influenciou diretamente na configuração das caixas laterais e no conceito aerodinâmico.
- Lauro Carneiro Neto – engenheiro responsável pela coordenação técnica e integração das áreas de engenharia estrutural, dinâmica veicular e aerodinâmica.
Wellington Ortiz Jr. – engenheiro de estruturas, encarregado da análise estrutural do chassi, definição dos pontos de carga, rigidez torsional e resistência ao impacto. - Ricardo Bock – professor da FEI (Faculdade de Engenharia Industrial), atuava como engenheiro-chefe de chassi, desenvolvendo o monocoque e os sistemas de absorção de impacto.
- Ricardo Achcar – ex-piloto e empresário, contribuiu com a geometria da suspensão, avaliação dinâmica e também atuava na área comercial e estratégica.
- Marcos Lameirão – filho de Chico, prestava apoio técnico e logístico ao time durante o desenvolvimento.
Também foi um grande apoiador o grande engenheiro Ozires Silva, cofundador da Embraer e à época presidente da empresa. A visão integrada dessa equipe visava alinhar performance, segurança e industrialização, com cada especialista responsável por uma área-chave do projeto.
2. A participação da Embraer
A Embraer, parceira do projeto desde o início, teria um papel fundamental na viabilidade técnica da proposta, ao disponibilizar sua estrutura técnica como ferramentas de CAD/CAE, ferramentas de telemetria, análise e tratamento de dados e o túnel de vento do CTA. A Embraer também seria responsável por grande parte do processo produtivo, incluindo o monocoque de fibra de carbono, carenagens, aerofólios, componentes de suspensão e pela montagem final, enquanto a CLR ficaria responsável pela operação e suporte de pista, além do know-how técnico de décadas de experiência no automobilismo e em monopostos.
3. Conceito Aerodinâmico e os Testes no Túnel de Vento do CTA
Em 1993, antes mesmo da constituição formal da CLR, duas maquetes em escala 1:2,5 foram construídas: uma do CLR F3 e outra de um chassi Ralt RT-35, então referência na Fórmula 3 internacional.
O conceito desenvolvido pela CLR resultou em um nariz lembrando um pouco os monopostos da Formula Vee, porém com dois dutos de entrada de ar.
Na imagem final da maquete com pintura o carro aparece sem um aerofólio dianteiro, porém em uma das imagens é possível ver que uma configuração mais tradicional também foi testada.
Na seção central, se destaca a carenagem parcial entre as rodas dianteiras e traseiras, lembrando um pouco alguns F1 da década de 1950.
Mas a seção traseira é onde está o grande destaque do CLR F3, que conta com uma barbatana dorsal para maior estabilidade (2) além de um difusor de grandes proporções (3).
Na maquete pintada, é possível notar ainda a presença de duas quilhas em adição à barbatana dorsal – similar em conceito ao que décadas depois apareceria na primeira iteração do Peugeot 9X8.
Os testes aerodinâmicos no túnel de vento do CTA, em São José dos Campos, apontavam para uma superioridade do design brasileiro. A geometria do CLR, com carroceria traseira suavemente fechada, áreas carenadas nas rodas e seção frontal reduzida, apresentou nos testes que o CLR exigia 20% menos potência para alcançar a mesma velocidade final que um Ralt RT-35 e era até 28 km/h mais rápido em regimes similares.
Esses dados validaram o conceito adotado e abriram caminho para a construção de protótipos em escala real.
4. Produção e Estratégia comerical
No plano original, a produção em série dos componentes principais do CLR F3 seria executada nas instalações da Embraer, incluindo:
- Monocoques em fibra de carbono
- Suspensões em alumínio aeronáutico
- Componentes estruturais da carroceria
A CLR ficaria encarregada da montagem final, entrega e suporte às equipes. A estimativa – um tanto quanto ousada – era atingir um mercado potencial de 300 unidades por ano, competindo em campeonatos sul-americanos e europeus. Três carros deveriam ter sido construídos inicialmente, para competir nos campeonatos sul-americano, inglês e europeu de Fórmula 3.
5. Interrupção e Fim do Projeto
O projeto foi interrompido abruptamente ainda em 1994, devido à privatização da Embraer, que passou a se concentrar exclusivamente no setor aeronáutico comercial e militar, encerrando colaborações externas.
Sem o suporte técnico, financeiro e logístico da Embraer, a CLR não teve como concluir os protótipos nem validar o modelo em pista. A fase de testes dinâmicos e homologação internacional jamais foi alcançada, encerrando precocemente uma iniciativa que reunia inovação, engenharia de ponta e ambição industrial.
6. Considerações finais
O CLR F3 Embraer foi um projeto visionário que sintetizou o que o Brasil pode produzir quando talento técnico, experiência de pista e estrutura industrial caminham juntos. Seu fim precoce não diminui o mérito de seus criadores — pelo contrário, reforça o valor da ousadia e da engenharia nacional em um campo onde raramente se joga em casa.
Em tempos em que a tecnologia automotiva volta a buscar leveza, eficiência e integração de sistemas, o CLR F3 permanece como referência histórica e técnica, lembrança de que a inovação não respeita fronteiras — nem geográficas, nem culturais.
Referências:
CLR. disponível em: https://www.lexicarbrasil.com.br/clr/.
CLR Embraer. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=D_q3taItU2c.
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Roco 001 (2019 – )
Apresentado em 2019, o Roco foi desenvolvido por Robbi Perez e José Cordova com base em um chassi Ralt RT34 de Fórmula 3 e o powertrain da Suzuki Hayabusa para a categoria P3.
Parabéns pela matéria Daniel, eu nunca havia ouvido falar neste projeto.
Os resultados foram promissores, mas me pergunto se esta categoria poderia servir de fato como escola, ou seria um nicho específico.
Digo isso pois acho que a pilotagem seria muito específica com este motor na dianteira, mesmo com uma distribuição de peso 50/50. O peso do motor estaria concentrado mais próximo do eixo de direção em vez dão eixo de tração, a parte traseira teria as bastante downforce, mas seria mais leve em relação a um carro de fórmula convencional.
De qualquer forma, infelizmente jamais saberemos, realmente uma pena.
Obrigado! Eu acabei encontrando esse projeto um pouco que por acaso enquanto pesquisa o material para outra publicação. A efetividade dessa configuração como categoria escola seria algo a se entender, já que o estilo de pilotagem poderia ser diferente das categorias imediataente acima como Fórmula 3000 ou Indy Lights.
além da equipe CLR,
Créditos:
Coordenação do Projeto na EMBRAER: Ivan Pedroso Barreto
Departamento de Multimídia EMBRAER: coordenação Nelson Campos, edição de imagens e videos “https://www.youtube.com/watch?v=D_q3taItU2c.” Chafic Matuc e Firoshi Yshida, book do projeto (foram impressos 150 books), edição de textos Ivan Pedroso Barreto, Ricardo Achcar, e equipe CLR,
Apoio Técnico do Departamento de Aerodinâmica da EMBRAER, Engs. Decio Pullin, Silvio Michida e Komatsu, Coordenação Ensaios CTA, Engs. Sadahaki Uiemo e Matsuo,
e contamos ainda com a importante colaboração e sugestões para procedimentos de mapeamento de pressões na carroceria e ensaios do Eng. e Prof. do CTA, Saback,
Contamos também com a colaboração da equipe EMBRAER de modeladores durante os ensaios.
Maquetes em escala 1:2,5, modelação Paulo Solaris, desenho técnicos e montagem equipe CLR,
Segundo o Laudo Técnico CTA, no ensaio aerodinamico comparativo em escala 1:2,5 com roda parada, o CLR teve 20% menos de arrasto em relação o Ralt F3, nas mesmas condições de ensaio, e com a mesma geração de down force (nem precisaríamos pelo equilibrio do chassi), segundo o memorial de cálculos dos esforços resistivos, esta diferença favorável ao CLR significaria 24 HP a menos para atingir a mesma velocidade máxima, (24 HP a menos para atingir 244 km/h), ou com a mesma potência atingir uma velocidade máxima 20 km/h maior, (264 km/h x 244 km/h)
Não foram realizados testes comparativos no CTA com o Dallara, mas estes testes foram realizados na mesma época na Itália no túnel da Dallara em escala 1:5, e mostravam um arrasto menor de 11% para o Dallara em relação ao Ralt,
Ou seja, o CLR superaria ambos em aerodinamica, Ralt e Dalara,com uma enorme vantagem sobre o Ralt e ainda uma boa vantagem sobre o Dallara, e provavelmente superaria ambos em equilíbrio e dinâmica veícular pela arquitetura, geometrias de direção e suspensões (conceitos CLR, Chico Lameirão e Ricardo Achcar), alinhada a melhor distribuição de pesos (50/50 x 40/60).
Muito Obrigado pelas adições! Os resultados com as maquetes eram promissores e poderia ter sido uma revolução no mercado da Fórmula 3 naquele período. Infelizmente as condições necessárias para a realização do projeto em um carro funcional não ocorreram, resultando em mais um caso de “E se..” que permeiam o nosso automobilismo e por que não, nossa engenharia.
Infelizmente, sem a EMBRAER (que após a privatização preferiu focar em projetos aeronáuticos), não teríamos mais a mesma condição com o patrocinador, uma estatal que pela legislação da época teria que abrir uma concorrência (com EMBRAER não seria necessário, capacidade tecnica incontestavel), na concorrencia fabricantes de F3 seriam chamados….
Também, sem a EMBRAER perdemos a possibilidade de compósitos aeronauticos com tecnologia aeronáutica de ponta, prepreg em moldes com vacuo + pressão e temperatura (vacuum bag e autoclave), e a solução para o coque já seria um compósito com outra qualidade….
Paralelamente, naquela época muitas marcas voltaram a resignificar e fabricar carros super esportivos com motor central dianteiro e tração traseira, a Ferrari por exemplo voltou a fazer um carro com esta arquitetura mais de 20 anos depois do Daytona GT4…
A Panoz chegou a fazer protótipos com esta arquitetura,
Hoje, nas categorias GT4, GT3 e GT2, disputam as 3 arquiteturas: central dianteiro, central traseiro e rabeta…
Hoje, 2025, se eu fosse conceber um novo super esportivo, ele seria minimalista, leve, com motor central dianteiro e tração traseira.
Sensacional o post, nunca li nada sobre este projeto antes.
E parabéns as adições nos comentários !!