Recentemente a Peugeot realizou o evento de apresentação do seu bólido para as provas do Mundial de Endurance, o 9X8. Desenvolvido sob o regulamento Hypercar da FIA/ACO, o mock up apresentado chamou atenção por não ter uma asa traseira, algo que não se via desde os anos 70 em um protótipo para Le Mans.
Antes de passar à aerodinâmica, entretanto, vale ressaltar que o protótipo utiliza um powertrain híbrido, com um motor de combustão 2.6 V6 biturbo de 500 kW (680 cv) ligado ao eixo traseiro por uma transmissão sequencial de sete marchas, e uma MGU-K de 200 kW (272 cv), ligada ao eixo dianteiro através de uma caixa de redução de uma velocidade.
Para aqueles que não estão acostumados ao termo, MGU-K vem de Motor Generator Unit – Kinect, que significa que se trata uma unidade motor/gerador que no caso do 9X8 recupera energia cinética durante as frenagens, armazena em forma de eletricidade em uma bateria de 900V desenvolvida em conjunto com a TotalSaft, e que posteriormente pode atuar como motor tracionando o eixo dianteiro do carro.
Por força de regulamento, a potência máxima combinada dos dois sistemas não pode ultrapassar os 500 kW, e a MGU-K pode funcionar em modo de tração apenas em velocidades superiores a 120 km/h. Dessa forma, a gestão da aplicação do motor de combustão de do motor elétrico é um dos desafios, que utiliza muito da experiência da montadora com a equipe DS na Fórmula E.
Como podemos ver no vídeo publicado pela Peugeot uma das possíveis estratégias de calibração inclui uma fase onde, ao final das retas o motor à combustão irá gerar potência superior ao máximo regulamentar, com o excedente sendo retroalimentado para as baterias. Ainda que pareça estranha, tal estratégia faz sentido para garantir um bom nível de carga na bateria e maximizar seu uso nos trechos de pista onde o motor a combustão não consiga atingir os 500 kW máximos.
Voltando a aerodinâmica, a ausência da asa traseira somente é possível com a utilização do chamado efeito-solo, o mesmo princípio utilizado pela F1 na década de 1980 e que em casos extremos levou à eliminação das asas dianteira e traseira (o exemplo mais extremo sendo o Arrows A2 de 1979, e que efetivamente guarda uma certo grau de semelhança com o protótipo francês).
Nas últimas décadas seria inimaginável esse tipo de design sem-asa, visto que os regulamentos sempre foram escritos de forma a limitar geometricamente os projetistas, com total liberdade na performance aerodinâmica. Por exemplo, na era do Grupo C havia um considerável grau de liberdade de design geométrico, incluindo o assoalho, porém a liberdade na performance trazia a necessidade do uso da asa traseira, seja como ferramenta de ajuste do balanço, seja auxiliando na extração do assoalho (um exemplo de aplicação recente é o protótipo brasileiro Sigma P1).
Com o fim do Grupo C e a passagem para os LMP1 nos anos 90, o regulamento seguiu na direção da redução do downforce total, limitando os carros a assoalhos planos com um difusor traseiro também limitado, o que acabou realçando a importância da asa como elemento gerador de downforce. Contudo, o regulamento permanecia aberto para os fabricantes buscarem a performance aerodinâmica máxima dentro dessas limitações, abrindo precedente para uma corrida de desenvolvimento para refinar os designs dentro das limitações apresentadas.
O regulamento estabelecido para os Hypercars, entretanto, representa uma mudança de paradigma e abre um leque de possibilidades de design já que o design geométrico tem grande liberdade, porém a performance aerodinâmica é limitada a parâmetros pré-estabelecidos, com um pacote aerodinâmico único homologado por um ciclo de 5 anos.
Ainda que os detalhes não tenham sido publicados, é de comum entendimento que o regulamento define uma meta de relação L/D de 4:1 (a relação L/D é a relação entre downforce gerado – lift, e o arrasto aerodinâmico – drag). Além disso, o downforce máximo é limitado a um Cl.A de 5.2, com o arrasto limitado a um Cd.A mínimo de 1.0, objetivos considerados relativamente simples de serem atingidos, com a própria Peugeot confirmando que foram necessárias apenas 3 semanas para atingir o objetivo de downforce desejado pela montadora.
A única grande limitação imposta do regulamento dos Hypercars é a utilização de um único elemento aerodinâmico ajustável, que pode ficar na seção dianteira ou traseira e limita consideravelmente a habilidade de ajustar o set up aos diferentes traçados e condições de pista, em contraste aos ajustes permitidos em carros como os P1 brasileiros.
Segundo a Peugeot, o mock up apresentado é representativo da configuração final, e foi construído com base no nível de design do início de 2021, congelado nessa para que o modelo pudesse ser construído a tempo do evento de lançamento.
A dianteira do 9X8 segue uma linha mais convencional de design, similar aos protótipos LMP1. O splitter dianteiro (1) tem a seção central elevada, e os faróis apresentam a identidade visual das garras do leão implementada em toda a gama Peugeot (2). Logo abaixo dos faróis estão tomadas de formato trapezoidal (3), que pela posição devem levar ar para o arrefecimento dos freios dianteiros. Na base do splitter dianteiro existe um endplate (4) e as aberturas das caixas de roda (5), porém o elemento que mais se destaca na dianteira do carro são os strakes (6), como podemos ver no detalhe abaixo:
Esses elementos parecem direcionar o fluxo de ar nessa área, porém não é claro o objetivo desse redirecionamento. É possível também que esses strakes sejam uma das formas de ajustar o balanço aerodinâmico ao controlar a quantidade de ar que é direcionado ao assoalho.
Passando à lateral, a tomada de ar do motor fica em localização convencional sobre o cockpit (7), e as tomadas de ar de arrefecimento (8) ficam posicionadas logo após o piloto, em posição elevada. Essa posição é reconhecida como mais sucetível ao acúmulo de detritos, principalmente os oriundos do desgaste dos pneus durante as provas.
Existe outra abertura (7) posicionada logo atrás das rodas dianteiras, e os retrovisores (8) estão integrados à sombra dos para-lamas dianteiros. Outra das novidades é que o regulamento agora exige que a estabilidade do carro seja comprovada através de simulações em CFD com o vento a 90º e de uma demonstração variando de zero a 180º, ao invés de especificar uma dimensão mínima para a barbatana dorsal. Para a Peugeot, isso abriu a possibilidade de reduzir a barbatana central (9), através da adoção de dois separadores de fluxo laterais (10), contribuindo para a estética única do 9X8.
Ainda na lateral, uma característica interessante são os vanes (11) posicionados no bordo de fuga das caixas de roda, que parecem direcionar parte do fluxo de ar “sujo” para fora do difusor traseiro. Existe também uma saída de ventilação (12), que provavelmente tem a mesma função de limpar ao máximo o fluxo sob o assoalho.
Porém é na seção traseira que está o grande diferencial do 9X8, já que ao invés de uma asa traseira existe apenas um “semi” spoiler integrado à carenagem (13). Ainda que por si só não seja um elemento gerador de downforce significativo, porém tem a capacidade de interagir e potenciar a extração do difusor traseiro (14), e algumas publicações acreditam que essa região poderá receber uma espécie de spoiler como elemento de ajuste de balanço aerodinâmico. Outro elemento que pode auxiliar na extração são as saídas de escape (15) pois, apesar do regulamento proibir a utilização da descarga para afetar as características aerodinâmicas do carro, pode se argumentar que sem um mapeamento de motor designado especificamente para utilizar os gases de descarga para esse fim, a descarga tem uma atuação passiva (ainda que benéfica) em relação ao comportamento aerodinâmico do carro.
Segundo a Peugeot, a configuração apresentada no mock up não é apenas um show car, e é representativa do design final, porém durante as entrevistas ficou claro que a especificação final irá depender do resultado dos testes em pista, e que caso necessário poderá ser utilizada uma asa convencional, uma barbatana de maior dimensão ou quaisquer outras modificações necessárias para garantir que o 9X8 tenha uma performance competitiva.
Muitos têm criticado o design proposto pela Peugeot, tanto ao afirmar que o carro não será capaz de obter o desempenho desejado sem um aerofólio, comparando o projeto ao malfadado Nissan GT-R LM, que também explorava conceitos aerodinâmicos mais agressivos.
Somente o tempo poderá dizer se a aposta da Peugeot renderá frutos, porém para aqueles céticos que se identificarem com o primeiro grupo, recentemente o protótipo DeltaWing competiu em Le Mans e posteriormente na IMSA sem utilizar um aerofólio, e ainda assim era capaz de uma performance condizente aos demais DPi e LMP2 contra o qual competia, provando que um design sem asa traseira é viável. Recomendo assistir ao vídeo do aerodinamicista Kyle Foster, onde além de explorar com maior propriedade os conceitos aerodinâmicos do 9X8, ele realizou uma simulação simplificada de um design similar para validar que esse tipo de construção realmente é capaz de atingir os targets do regulamento Hypercar.
Para o segundo grupo, podem também verificar nossa postagem sobre o Nissan GT-R LM, e recomendo a leitura para aqueles que puderem acessar de uma série de três artigos da revistas Race Car Engineering (edições de Abril/2020, Setembro/2020 e Abril/2021, respectivamente) onde o saudoso Ricardo Divila e Simon Marshall descrevem aquilo que deu certo e o que não funcionou no projeto da Nissan, da perspectiva de quem estava dentro do projeto.
Nissan GT-R LM Nismo (2015)
A história do malfadado protótipo de tração dianteira desenvolvido pela Nissan: seria realmente um problema do conceito ser inviável ou a implementação que deixou a desejar?
Conteúdo complementar
Link com uma entrevista com o time de design da Peugeot, detalhando um pouco sobre como design e engenharia caminharam lado a lado na concepção do 9X8, além de alguns detalhes sobre a construção do mock-up.
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Daniel, sempre excelente nas suas analises. So discordo na parte do “sucesso” do Deltawing, visto que os proprios pilotos falaram muito da instabilidade do conceito e que ele acabou sendo abandonado, porque nao tinha muito para onde ir. Te confesso que estou entre os ceticos e nao estou vendo la muito sucesso nesse conceito do 9X8, que deve funcionar minimamante apenas nas monstruosas retas de Le Mans. Vamos ver como será. Grande abraço!!!
Quando falo no sucesso do Deltawing me referia principalmente à capacidade de gerar uma quantia competitiva de downforce mesmo sem utilizar aerofólios tradicionais, apenas com o underfloor. Acho que no caso do Deltawing, o problema da instabilidade estava mais ligada ao conceito de “Delta”, com mais de 70% da massa apoiada sobre o eixo traseiro, e à incapacidade de gerar downforce significativo na dianteira devido à pequena bitola. Tanto que chegaram a adaptar uma espécie de splitter na dianteira, para tentar melhorar o balanço. Não dá para saber o quão competitivo o 9X8 será, porém parece que a Peugeot está mirando Le Mans primeiro, e o restante é lucro. No final, como os targets aerodinâmicos são fixos para todos, e relativamente baixos, vamos aguardar para ver… Grande abraço!